De que serve uma lei recuperatória, senão para buscar alternativas para o empresário (seja ele individual ou pessoa jurídica) em crise? De que vale se prever um ordenamento jurídico para tentar viabilizar a superação do estado de crise do devedor, se a jurisprudência permite o privilegio inalcançável de certos credores em detrimento da atividade? E por fim, de que vale, sustentar princípios (como o da preservação da empresa) se na prática, padecem de sustentação normativa? Tais questionamentos se mostram adequados diante de alguns aspectos práticos que a Lei no 11.101, de 2005, põe à prova nessa quase primeira década de vigência da norma.
Além da inacreditável exclusão do crédito tributário da recuperação judicial do devedor, que até os dias atuais carecem de uma regulamentação de âmbito nacional acerca das possibilidades de parcelamento, vem ganhando espaço no dia a dia forense aqueles credores que ostentam a qualidade de fiduciários.
Isto porque, a Lei 11.101 de forma bastante imperativa, em seu art. 49, exclui tal credor do âmbito da recuperação judicial ao lado de outros como o credor das operações de leasing. Ocorre que tal dispositivo vem sendo interpretado de maneira extensiva, de modo a englobar todos os possíveis contratos que envolvem uma alienação fiduciária e que hoje são celebrados para garantir empréstimos e financiamentos de recursos monetários ao empresário. Assim sustentam alguns, pelo fato da lei ao excluir o credor fiduciário, ter englobado tanto o credor sobre bem móvel quanto imóvel. Destarte, argumentam que aquele credor de cessão fiduciária de direitos creditórios seja através de títulos de credito ou não estariam albergados pela exclusão na recuperação judicial.
Deve ser respeitado é o principio hermenêutico de restringir aquilo que o próprio legislador quis excepcionar.
Ocorre que tal afirmação é precipitada, não pelo principio da preservação da empresa mas pela própria interpretação normativa e sistemática que a lei de recuperação exige. Poderia se sustentar a submissão desses credores à recuperação judicial com fundamento no art. 47, de modo a propiciar a reestruturação da atividade em crise. Porém, antes de tal principio, podese e devese interpretar o art. 49 de maneira restrita e dentro da sistemática na qual foi inserida.
Pela simples leitura do dispositivo (art. 49) percebese que a intenção do legislador foi retirar do âmbito da recuperação judicial os credores que possuem garantias representadas por bens no qual o devedor exerce sua atividade. Assim, colocou o credor fiduciário ao lado de outros fornecedores dos chamados bens de capital, indispensáveis ao empresário em crise, para continuação dos seus negócios. Assim é que o próprio dispositivo ao elencar, frisase, num rol exaustivo esses credores não afetos à recuperação judicial, afirma que não se admitirá a retirara dos bens relativos a garantia e/ou propriedade por esses credores, do alcance do devedor em recuperação, durante certo prazo. Ora, pelo simples contexto do qual a exceção foi inserida, é de fácil percepção que à ela somente se enquadrariam os fornecedores de equipamentos, máquinas e/ou imóveis que estejam à serviço do devedor em crise. Assim será o tratamento para o credor de leasing que disponibilizou equipamentos para o empresário, bem como aquele credor fiduciário que transferiu a propriedade resolúvel de determinado bem de capital para o empresário.
Permitir que nessa mesma exceção, enquadremse aqueles credores fiduciários que não fornecem bens necessários ao desenvolvimento do objeto do empresário, é querer criar um novo privilegio para um credor que já possui uma garantia legal. Sendo assim, aqueles credores que ostentam a qualidade de fiduciário mas que a sua garantia se perfaz em direitos creditórios do devedor ou até mesmo em títulos de credito, não podem ser confundidos com aquele credor fiduciário que transmite a propriedade de um equipamento, máquina ou até mesmo um imóvel diretamente útil para a execução da atividade do empresário.
Não se questiona que o contrato entre as partes seja de alienação fiduciária, como até recentemente enquadrou o STJ, ao equipar a cessão fiduciária de créditos como sendo espécie do gênero contratual de alienação fiduciária. O que deve ser respeitado é o principio hermenêutico de restringir aquilo que o próprio legislador quis excepcionar.
Interpretar de maneira diferente é ignorar os inúmeros contratos de financiamento a que o empresário está sujeito no seu dia a dia e inserir a maior parte dos seus débitos (ressalvado o tributário que também não está sujeito a recuperação) fora dos efeitos da recuperação. Isso nos levaria aos mesmos questionamentos iniciais deste artigo, criandose assim um circulo vicioso e uma única certeza: a de que mesmo tendo mudado a legislação, estaríamos fadados ao mesmo fracasso das antigas concordatas que, ao final das contas, somente vinculavam os créditos quirografários. Isso é recuperar ou retardar? E ainda dizem que o tempo ameniza…
Scilio Faver é advogado e professor de direito empresarial, sócio do escritório Vieira de Castro e Mansur Advogados e professor na EMERJ e PUCRJ.
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Scilio Faver