Por Scilio Faver
O primeiro código de processo totalmente idealizado, discutido e finalizado (em texto normativo) no período democrático no Brasil, é o vigente, publicado pela lei 13.105/15. Tal fato revela-se importante, ao passo que, não apenas, obviamente vem atento e de acordo aos desejos constitucionais do Estado Democrático de Direito (e nem poderia ser diferente, pois então não seria norma jurídica) como a sua interpretação deve-se alinhar aos princípios constitucionais que servem para higidez da Carta Magna.
Isso é revelado a todo instante no texto legal e, sendo necessário indicar um dispositivo que pudesse ser concebido como grande resultado desta imposição hermenêutica, penso ser o art. 489, especialmente o seu parágrafo primeiro. Nele, pode-se dizer, se conceitua o que se entende por fundamentação de decisão judicial. Não por acaso, ele exterioriza todo o perfil democrático do processo e revela o que se espera quando respeitada a principiologia especificada nos demais dispositivos do código. De fato, a fundamentação das decisões judiciais, transcende um direito processual, pois a exigência de – efetivamente – fundamentar decisões, é gravitacional no sistema democrático. Ou seja, em direção à fundamentação e por ela, se coloca a existência de um processo judicial democrático. A falta desta fundamentação, não pode resultar em ato de autoridade. Não se pode conceber uma decisão não fundamentada como um ato processual pois simplesmente não preenche os requisitos para ser considerado um ato processual. Esse ato, assim, não gravita em torno ao sistema. A sua presença, ainda que meramente fática, é prejudicial e deve ser expurgada da realidade jurídica.
Inegável a necessidade da imposição da descrição do que se considera como fundamentação das decisões judiciais tendo em vista a deficiência vivenciada na prestação jurisdicional nos últimos anos. Ainda que se trate de grande volume de casos (o que é também fato notório) não se pode descuidar daquilo que sustenta a própria existência de um Poder Judiciário. E essa força gravitacional que mantém a autoridade deste Poder é, como dito, a fundamentação das decisões judiciais. Muito mais perigoso do que a tão almejada (e por vezes irresponsavelmente almejada) celeridade processual é a sensação de injustiça que uma decisão não fundamentada provoca no jurisdicionado. Nada é pior (nem mesmo o tempo) do que ter que conviver com um decisório que lhe impõe algo sem resultar da dialética. É isso que representa uma decisão judicial não fundamentada (se é que se pode chamá-la de decisão judicial)
Desta forma, como resultante, por exemplo, do princípio da cooperação tem-se que a decisão judicial não é ato unilateral, pois resultante do intenso debate promovido durante todo o procedimento, por todos os sujeitos que participam do procedimento, até chegar-se ao momento do resultado, emanado sim pela autoridade competente. Porém, todos os sujeitos do processo, de fato, produzem aquilo que será a conclusão (decisão) sobre a questão, promovendo e injetando fundamentos para o ato de decidir, que não é e nem nunca foi ato solitário ou eivado de premissas pessoais do julgador (o que se vê também no dispositivo sobre a apreciação, pelo julgador, das provas no processo – art. 371)
Em complementação, o princípio do contraditório somente se mostra aperfeiçoado, quando não apenas se dá oportunidade das partes se manifestarem, mas principalmente quando se permite que sejam “ouvidas” no processo e que portanto, a decisão expressamente se refira aquilo que foi dito, acolhendo ou não. O desdobramento desse princípio impede a hipótese de se ver surpreendido por algo que não foi previamente debatido. O contraditório não é mais visto como figura narcísica de apenas aparecer refletida a imagem no curso do processo. Se impõe que o reflexo saia da aparência e se torne corpóreo ao julgador, seja para acolher o que foi dito ou para afastar a sua importância com argumentos, superações ou distinções ao caso analisado.
Outra indubitável contribuição do § 1º do art. 489 do CPC, é justamente a inspiração de redescobrirmos (ou lembrarmos) do que é o direito. Ora, não se presta a uma decisão judicial, a fundamentação em simples texto legal, sem dizer como este se conecta com o caso analisado. Da mesma forma, não se pode conceber o direito como sinônimo de lei, apenas. O direito é formado (e aperfeiçoado) por um conjunto de três elementos, quais sejam: a lei, a doutrina e a jurisprudência. Esses três elementos resultam na interpretação que cabe ao julgador. Realizar o direito, portanto, não é aplicar a lei ao caso concreto, mas sim fundamentar a decisão judicial naquilo que o direito o é, interpretando como norma aquilo que advém da extensão da lei, da doutrina e da jurisprudência. Tanto é que a ação rescisória, por exemplo, é cabível quando violada a norma jurídica e não portanto, apenas a lei. E hoje, indiscutivelmente está concebido (pela própria lei) a vinculação da jurisprudência como norma. Quando o referido dispositivo detalha a preocupação com a conexão entre o ato decisório com a jurisprudência (com graus de vinculação diferentes), se reforça que o direito não se resume ao texto legal.
Como dito no início deste artigo, o resultado do processo, encarado no ato de decisão judicial (sobre qualquer questão colocada e sob qualquer forma assumida), resulta dos princípios concebidos pela constituição e resume, de fato, a preocupação no processo justo, como sendo aquele que resulta de uma decisão democraticamente fundamentada.
Artigo originalmente publicado no portal jurídico Migalhas.