Por Scilio Faver
Quando se garante a existência de um sistema para acesso à justiça é indissociável pensar na coerência no ato de prestação jurisdicional. No exercício desta tarefa, ao julgador compete não expor aquilo que é sua simples opinião sobre determinado texto legal. A verdadeira prestação jurisdicional justa é aquela que atende a própria preservação do sistema judiciário, de forma a uniformizar decisões para casos idênticos. É mais que segurança jurídica, é simplesmente entender o interesse público em julgar, em prestar um serviço público. É, enfim, realizar a justiça humanamente atingível.
Não por acaso, o Código de Processo Civil, constatando a grave deficiência da incoerência na prestação jurisdicional, que inegavelmente existe, inaugura no livro de Processos nos Tribunais, uma simples e lógica norma de conduta: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926)”.
O dispositivo transcrito, impõe não apenas uma condição para eficiência da jurisdição, mas também, por meio da qualidade da sua redação (como um mandamento ao julgador), reafirma o que é julgar, ou ao menos, o que deve se entender como exercício da jurisdição. Quando se impõe a uniformização da jurisprudência busca-se alcançar o princípio basilar de justiça (neste aspecto plenamente alcançável pelo ser humano, mesmo considerado o seu estado de ser imperfeito), ou seja, de se dar para casos idênticos as mesmas soluções judiciais.
Deve-se atentar ao sistema processual legitimamente criado e, uma vez vigente torna-se norma de conduta cogente. Se trata aqui, de gerar uma unidade sistêmica para o bem comum. O julgador, ao realizar a difícil tarefa de decidir sobre questão1, não opina mas sim aplica o direito com as ferramentas disponíveis no ordenamento juridico (lei, doutrina e jurisprudência). A unidade do sistema, complementa o dispositivo legal mencionado, será responsável por manter os julgados coerentes, de forma que não tenha, para aquele que se socorre à justiça, a infelicidade de ler outro julgado – com a mesma questão – em sentido diametralmente oposto ao decidido no seu caso.
Apesar do esforço do Código (que deve continuar na sua batalha de conscientização), o Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, não vem dando bons exemplos. O pior: a falha torna-se cada vez mais perceptível e a incoerência alcança patamares em que é urgente uma reflexão no momento da redação dos seus julgados (sejam acórdãos ou decisões monocráticas)
O exemplo que será exposto neste texto ainda se torna mais problemático, devido ao fato de a questão limitar-se ao cumprimento de atos processuais das partes. Ou seja, não se trata de complexa questão de direito material ou ainda matéria da qual se constata a ausência de texto legal a dirimir a controvérsia. Trata-se de questão básica, ligada essencialmente ao mais literal “acesso à justiça“. Isto é, a prática de ato processual e o termo inicial do prazo uma vez constatada a duplicidade de intimações ocorridas (uma em Diário de Justiça Eletrônico e outra via intimação pessoal pelo portal do processo eletrônico)
Desde a implementação do processo eletrônico (que infelizmente é feito de forma a se lamentar em todo território nacional, com cada tribunal tendo por vezes mais de três sistemas processuais distintos e formas diversas de comunicação de atos regulamentadas, por sua vez, em atos/portarias/resoluções das suas próprias corregedorias), se discute o que deve prevalecer, para termo inicial do prazo, quando um ato é publicado no Diário de Justiça Eletrônico (DJe) e também realizada a intimação pessoal eletrônica (por meio dos vários e inexplicáveis sistemas processuais implantados por cada tribunal ao seu bel prazer).
A resposta para essa indagação é listada por várias ementas do STJ sobre o assunto e como não é novidade (em se tratando da ciência jurídica), várias são as posições e resultados práticos, que neste aspecto só levam ao caos.
A Corte Especial do STJ, no entanto, em 18 de dezembro de 2019, ao julgar a divergência de posicionamento existente entre a Segunda e a Terceira Turmas do Tribunal, reafirmou posição que já havia tomado em 2018, que deve prevalecer a intimação realizada pela imprensa oficial quando houver também a intimação pela via eletrônica2.
Já em outro caso, onde a mesma discussão era travada, o ministro relator da 3ª Turma, em julgamento realizado em 16 de março de 2020, assinala no seu voto o seu conhecimento da decisão proferida pela Corte Especial do Tribunal, no entanto, assevera que este não lhe parece o posicionamento mais correto e por entender que àquela Corte Especial não havia analisado como fundamento a boa-fé objetiva (princípio norteador do processo), deveria prevalecer a intimação eletrônica e não a realizada pela imprensa oficial (frisa-se, na mesma hipótese de ter ocorrido dupla comunicação, uma por DJe e outra por intimação eletrônica).3
De acordo com o Regimento Interno do STJ, a Corte Especial, tem dentre as suas atribuições, a nítida função de pacificar os entendimentos divergentes entre as turmas/seções (art. 11 do RISTJ), de modo a tornar realidade o que hoje estabelece o dito art. 926 do Código de Processo Civil. Sua existência, no âmbito da organização do STJ, é de grande importância para um processo civil democrático. É no entanto, de causar surpresa, a sobrevivência de argumentos utilizados pelos julgadores das Turmas que, mesmo diante de uma controvérsia “pacificada” pela dita Corte Especial, firmam decisões contrárias em relação as mesmas questões, fazendo com isso perpetuar uma divergência que deveria já ter sido afastada.
O resultado prático é uma incoerência não apenas interna (diante das próprias atribuições prevista no RISTJ) como também externa (da própria forma de se realizar a jurisdição). Por outro lado, a ausência de consenso na forma de decidir dos julgadores (ao invés de aplicar os posicionamentos adotados pela Corte Especial) é responsável por mais e mais recursos para a Corte Especial, gerando mais e mais morosidade. E depois, ainda dizem que os prazos em dias úteis é que representam o “novo” problema de morosidade…
Porém, a incoerência nas turmas do STJ sobre essa mesma questão atinge proporções ainda mais prejudiciais. Neste último caso exposto, o ministro relator, da 3ª turma, foi acompanhado por todos os seus pares. No entanto, em outro caso de questão idêntica, ainda na mesma turma, a mesma ministra que havia votado com o relator no primeiro caso exposto neste artigo, se alinhou ao entendimento existente na Corte Especial (agora como relatora deste segundo caso).4 O mais inacreditável, é que neste segundo caso, também foi acompanhado por todos os mesmos integrantes da 3ª turma, inclusive pelo mesmo ministro que, quando relator do primeiro caso exposto, com a mesma questão (conforme abordado anteriormente), havia se posicionado de forma contrária ao entendimento da Corte Especial. Ou seja, quando estava como Relator apontou voto divergente para com o decidido pela Corte Especial, porém, quando não estava como relator do caso, na mesma questão, contentou-se em expressar concordância com orientação da Corte Especial, votando exatamente nesse sentido. Por sua vez, a relatora do segundo caso analisado, também não se preocupou, quando do julgamento do primeiro caso, em votar de forma contrária ao decidido na Corte Especial. Por incrível que possa parecer, os dois julgados, com a mesma questão, na mesma Turma, com a mesma composição de julgadores, tiveram conclusões opostas (e ambos julgados por unanimidade!). A diferença temporal de julgamento entre eles: três meses!
Este exemplo mostra-se necessário e simbólico, pois se está falando de uma questão intrinsecamente ligada ao modo de agir no processo, isto é, da possibilidade de ver analisada a questão de fundo. E pior: mesmo existindo posicionamento da Corte Especial do STJ, há ainda julgadores do próprio STJ que resistem para fazer valer suas próprias convicções ou entendimentos sobre a questão. Não se está dizendo que não é permitido ter posicionamentos, porém, não se pode querer sobrepô-los à finalidade de um sistema de jurisdição, querendo imprimir hipóteses de superação ou distinção daquele posicionamento traçado pelo órgão uniformizador (sem ao menos inclusive fundamentar). Não se sustenta o argumento de padrões decisórios vinculantes ou não vinculantes quando se concebe que o ato de julgar, é sobretudo, traduzir a incerteza em certeza. Os jurisdicionados, que colocam suas vidas em julgamento, não querem opiniões pessoais sobre suas questões, mas sim a aplicação do que o Judiciário (como unidade representativa da jurisdição e como serviço público que é) entende ser o direito aplicável para o caso.
Outros exemplos existem, em vários outros tribunais e que devem ser objeto de reflexão do que é efetivamente PRESTAR a jurisdição. O distanciamento das convicções pessoais não descaracteriza o julgador como sujeito indispensável ao sistema judiciário, pelo contrário, o preserva.
É recomendável que sempre se lembre que a jurisdição é um serviço prestado e como tal, é submetido aos critérios de qualidade. Por enquanto, repetindo os dizeres imortais de Fauzi Arapi, nesse jogo perigoso que pratico aqui, eu acuso e confesso por nós.
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1 Aqui se utiliza o termo questão, como ponto controvertido, objeto de debate no procedimento em contraditório (processo)
2 AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. CONTAGEM DE PRAZO. INTIMAÇÃO PELO DIÁRIO DA JUSTIÇA. PREVALÊNCIA SOBRE INTIMAÇÃO ELETRÔNICA. ACÓRDÃO EMBARGADO CONFORME ENTENDIMENTO ATUAL DO STJ. SÚMULA N. 168/STJ. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. Estando o acórdão embargado de acordo com a jurisprudência atual desta Corte no sentido de que que deve prevalecer a intimação realizada pela imprensa oficial quando houver também a intimação pela via eletrônica, tem incidência o disposto no verbete 168/STJ.
2. Agravo interno não provido.
(AgInt nos EAREsp 1.448.288/RJ, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/12/19, DJe 4/2/20)
3 EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CPC/2015. INTIMAÇÃO NO DJE E INTIMAÇÃO ELETRÔNICA. CONTAGEM DO PRAZO RECURSAL. PREVALÊNCIA DA INTIMAÇÃO ELETRÔNICA. EXEGESE DO ART. 5º DA LEI 11.419/2006. TEMPESTIVIDADE DO RECURSO ESPECIAL. NECESSIDADE DE ENFRENTAMENTO DO MÉRITO RECURSAL.
1. Controvérsia acerca da contagem de prazo recursal na hipótese de duplicidade de intimações, um via DJe e outra via portal eletrônico de intimações.
2. “As intimações serão feitas por meio eletrônico em portal próprio aos que se cadastrarem na forma do art. 2º desta Lei, dispensando-se a publicação no órgão oficial, inclusive eletrônico” (art. 5º, ‘caput’, Lei 11.419/2006, sem grifos no original).
3. Prevalência da intimação eletrônica sobre a intimação via DJe, na hipótese de duplicidade de intimações. Entendimento em sintonia com o CPC/2015.
4. Contagem do prazo recursal a partir da data em que se considera realizada a intimação eletrônica, sendo tempestivo o em recurso especial interposto nestes autos.
5. Reforma da decisão agravada para se afastar o óbice da intempestividade.
6. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO ACOLHIDOS.
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, acolher os embargos de declaração, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com o Sr. Ministro Relator. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Moura Ribeiro.
(EDcl no AgInt no AREsp 1281774/AP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/3/20, DJe 18/3/20)
4 PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÃO DE CONTRATO. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER E COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. INTEMPESTIVIDADE DO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LEI N° 11.419/2006. INTIMAÇÃO TÁCITA. PREVALÊNCIA DA PUBLICAÇÃO DO DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO. PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL DO STJ. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO, OBSCURIDADE OU ERRO MATERIAL. INEXISTÊNCIA.
1. Ação de rescisão contratual cumulada com pedidos de obrigação de não fazer e compensação por danos morais.
2. “Havendo intimação eletrônica e publicação da decisão no Diário da Justiça Eletrônico, prevalece a data desta última, pois, nos termos do art. 4º, § 2º, da Lei 11.419/2006, a publicação em Diário de Justiça eletrônico substitui qualquer outro meio de publicação oficial para quaisquer efeitos legais.” Precedente da Corte Especial do STJ.
3. Rejeitam-se os embargos de declaração quando ausente omissão, contradição, obscuridade ou erro material a ser sanado.
4. Embargos de declaração no agravo interno no recurso especial rejeitados.
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, rejeitar os embargos de declaração, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Moura Ribeiro.
(EDcl no AgInt no REsp 1827489/RJ, rel. ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/6/20, DJe 18/6/20)
Artigo originalmento publicado no Portal Jurídico Migalhas