postado por VCMF Advogados
sob a categoria Artigos e Publicações
24 de fev

Por Scilio Faver

A questão da legitimidade para o processo judicial de recuperação passa, inegavelmente, assim como todo o instituto recuperatório, por uma interpretação constitucional da lei 11.101/05. Não há como não se conceber a recuperação judicial como sendo parte necessária da efetividade daquilo que se insere no art. 1º, IV da CF/88. A livre-iniciativa é, como retratada na constituição, elemento fundamental para o Estado Democrático de Direito. Não por acaso o constituinte dedicou um capítulo na Carta Magna (art. 170), para tratar dos princípios gerais da atividade econômica, estabelecendo o claro desejo (manifestado e reiterado pela sociedade) de preservação e estímulo da livre-iniciativa. Dentre esse caminho, especializou-se um processo judicial de recuperação.

A lei vigente (11.101/05), em seu art. 1º, de fato, limita a sua aplicação para aqueles que são considerados empresários (seja em qualquer espécie, se pessoa física ou jurídica). A sua abrangência está associada à dicotomia, ainda resistente no direito brasileiro, de segregação jurídica entre os agentes econômicos. Fala-se em segregação jurídica, pois, faticamente, à luz da Teoria da Empresa tal como concebida por Alberto Asquini, na maior parte das vezes não se mostraria viável uma distinção de tratamento juridico entre os seus exercentes como operada pelo direito brasileiro. Isto porque, independente da forma jurídica adotada para exercer uma atividade econômica, a empresa (como atividade) restará evidenciada, se presentes elementos fáticos (e não jurídicos). O sistema normativo vigente, optou por disciplinar dois regimes jurídicos dependendo da qualidade (jurídica) com que se desempenha uma atividade. O preceito, de tão subjetivo que é ora deixa margem a dúvida – sobre se está diante de uma atividade com organização de fatores de produçãoe portanto se considerada pelo sistema normativo como empresária ou não – e ora se resolve de forma simplista e formalista, desconsiderando a realidade fática – como a disposição que impõe sempre a uma cooperativa o tratamento juridico de não empresário. O que se vê no ordenamento brasileiro é uma mistura intricada e totalmente perdida do senso comum, para ao final de tudo, ainda segregar o tratamento juridico aos agentes econômicos. O pior é que a consequência danosa deste sistema repercute no mercado de concessão crédito, de aplicação de juros, na segurança das relações comerciais e civis e na criação e manutenção de empregos.

Desta forma, como dito, o art. 1º da lei 11.101/05, de fato, deixa clara a limitação para a legitimidade apenas do empresário (aquele assim juridicamente considerado) para o acesso ao processo judicial de recuperação. Ocorre que, para aquele agente econômico que não é considerado juridicamente empresário simplesmente não existe uma possibilidade de acesso ao processo judicial de recuperação. Para o mundo dos fatos todos veem os elementos de empresa na sua atividade, mas, por incrível que pareça, o sistema normativo é cego ao óbvio. Ou seja, os mecanismos criados para fortalecer e estimular a continuação de uma atividade econômica, mereceu, tratamento flagrantemente desigual pelo legislador infraconstitucional, o que por esse simples fato, já torna a sua interpretação literal destoante dos preceitos fundamentais da Carta Magna. Passados mais de quinze anos da primeira e única lei de recuperações no Brasil (não se considera a concordata como processo recuperatório, pois em nada guarda relação com o instituto vigente) ainda não há uma legislação para amparar aqueles agentes econômicos (principalmente em termos de processo judicial de recuperação) que não são (por simples formalidade legal) considerados empresários, mas que exercem igualmente uma atividade econômica (e faticamente, até de empresa).

Ocorre que, o fato de se ter uma clara omissão do Poder Legislativo neste aspecto, não significa que o Direito não sirva para colocar à disposição destes agentes econômicos a possibilidade de um processo judicial de recuperação. Aliás, não seria a ciência jurídica, uma ciência autônoma se não tivesse como objetivo assegurar, na prática, a materialização dos preceitos fundamentais da Constituição. É de se recordar que o direito não é formado unicamente pelas leis, de modo que a ciência jurídica não se resume a simples “aplicação literal da lei”. O moderno processo judicial já há muito abandonou a restrição do julgador como sendo a “boca da lei”. As decisões judiciais são fundamentadas pelo Direito, e este é formado por lei, doutrina e jurisprudência. Exige-se do direito, uma forma de aplicação harmônica das normas, atento aos princípios (normas fundantes) – que não são aplicados apenas em caso de omissão mas também para compatibilização do sistema – , de modo que seja o ordenamento jurídico um “corpo vivo” equilibrado com os desejos sociais e as necessidades de um povo.

Para os que sustentam a restrição da interpretação pura e literal de um texto legal (ou que afastam a aplicação de princípios como base normativa fundante e o relegam para a omissão de um texto legal), torna-se, talvez inconcebível, a existência, por exemplo, de um controle judicial de compatibilidade da lei com a constituição e que, portanto, aquilo que se apresenta literalmente escrito e emanado pelo Poder Legislativo, não necessariamente será visto como parte de um ordenamento juridico aplicável, simplesmente por não se compatibilizar com a Constituição. Por mais que não queiram estes, o sistema está posto desta forma. A razão de ser por exemplo, do controle de constitucionalidade, é justamente reafirmar a autoridade do Direito naquilo que se funda o próprio Estado Democrático de Direito. E recorde-se, que, em regra, a consequência do controle de constitucionalidade é retroativa, de modo a restar evidente o seu cunho declaratório de não conceber a entrada de norma colidente com desejo constitucional, contrária portanto ao nosso verdadeiro pacto social. Por óbvio, o Poder Judiciário, como sendo aquele que, de fato, está mais perto dos anseios da população – em inegável extensão do direito constitucional do acesso ao judiciário – estará, em suas decisões, produzindo verdadeiramente normas vinculantes. Veja-se hoje, a importância da jurisprudência como norma jurídica.

Portanto, para o Direito, não há uma submissão cega à interpretação literal de dispositivos legais. Neste compasso, é que no caso de processo judicial de recuperação, se torna possível a aplicação do art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), para complementação, quando persiste omissão/lacuna no ordenamento federal vigente. É de se frisar que a omissão aqui é justamente constatada pela comparação do claro desejo constitucional de estímulo da atividade econômica (não fazendo qualquer restrição em relação a formalidade do agente ou ao seu regramento juridico-formal) e da restrição da legitimidade no processo judicial de recuperação. Ou seja, enquanto não tivermos algum processo judicial de recuperação para os demais agentes que não sejam aqueles juridicamente considerados pelo art. 1º da lei 11.101/05, a sua aplicação se mostrará ampliada pelo art. 4º da LINDB. Importante esclarecer que não defendemos a necessidade de lei específica, mas sim de urgente modificação da lei recuperatória existente para ampliar literalmente os seus legitimados, aproveitando-se assim do que já existe em termos procedimentais, em uma técnica legislativa mais proveitosa.

Neste aspecto, com fundamento do art. 4º da LINDB, em comparação com o texto constitucional e seus princípios basilares, é que sustentamos a possibilidade (enquanto não há uma produção ou alteração do texto legal) de inclusão, dentre os legitimados, daqueles agentes econômicos que não são considerados juridicamente empresários. É de se ver que o art. 47 da lei 11.101/05, que expõe os objetivos de uma recuperação aplicam-se, por óbvio a qualquer agente econômico. A conclusão é simples e constitucional: Se existe um princípio constitucional estabelecido como objetivo do Estado Democrático de Direito, consistente em estimular a atividade econômica (inclusive com menção expressa ao cooperativismo, exemplo claro de agente que por lei não é considerado empresário) e, por enquanto, existe apenas uma única lei de recuperação judicial, que em seu texto, tem aplicação restrita ao empresário, não há como não permitir, que, enquanto inexistente um mecanismo similar a esse grupo de exercentes, possa se aplicar o único processo judicial disponível para se tentar a recuperação da atividade econômica (ainda que juridicamente não empresária).

Qualquer interpretação contrária a essa possibilidade, esbarra não apenas na ausência de efetividade daquilo que é colocado como fundamento da Carta Magna como também, por óbvio, esbarraria em violação ao direito de acesso ao judiciário. Não é argumento o fato de que é possível ao agente econômico a tentativa da sua recuperação por meio de acordos extrajudiciais. O que se discute aqui é justamente o acesso a um processo judicial, com tutela jurisdicional de modo a gerar segurança jurídica. O que se tem é um descompasso entre o que a Constituição institui como dever do Estado (e como fundamento) e a regulamentação do acesso ao judiciário de um processo recuperatório, que restringe a sua aplicação, sem ao mesmo tempo, se ter alguma outra previsão (ou outro mecanismo igualmente judicial) para amparar os demais agentes econômicos. E isso não é inovação, é simplesmente a aplicação daquilo que concebido como hermenêutica. Constata-se que, na incapacidade de se seguir a uma atividade econômica, a lei foi clara a disciplinar (ainda que essa dualidade seja por nós criticada), dois instrumentos, igualmente judiciais, quais sejam: a falência de um lado e a insolvência civil de outro. Ambos, processos judiciais, que objetivam instaurar o concurso de credores. O tratamento para o insolvente, portanto, existe em paridade de condições em comparação ao seu tratamento legal. O mesmo não acontece com o processo judicial recuperacional. Existe para este, um verdadeiro vazio legislativo.

De forma similar também deve-se relativizar a proibição contida no art. 2º, II da lei 11.101/05. Em tal dispositivo elenca-se uma série de atividades – inegavelmente econômicas e por vezes, até mesmo juridicamente consideradas como empresárias – que estão submetidas a algum tipo de controle desempenhado, principalmente, pelas denominadas agências reguladoras (ou similares). A intenção, a princípio, foi de exclui-las do regime recuperatório judicial, sob a justificativa de que são tratadas em legislação especial e que, pela importância e impacto das suas atividades no meio coletivo, deveriam ter tratamento próprio, de modo a manter uma segurança jurídica e social.

De fato, todas os agentes mencionados possuem disciplina em leis especiais e que, também, por sua vez, possuem previsão de um procedimento administrativo nas hipóteses de alguma anomalia no desenvolvimento das suas atividades (que nem sempre são de índole apenas econômico-financeira). Denominam-se como intervenção, direção extraordinária (direção fiscal) e até de liquidação extrajudicial, lideradas pelas ditas agências reguladoras, como sendo parte de um exercício de fiscalização interventiva.

Na maior parte das vezes, entretanto, tem-se se visto que o caminho, quando assim iniciado, conclui-se com a venda de ativos ou, na maior parte das vezes, a liquidação com encerramento das atividades. No cenário da saúde, por exemplo, o que se vê, é justamente o oposto de uma garantia de “ordem social” que deveria ser primada pela regulação da atividade. Paralelamente ao setor bancário o que se vê, nos últimos anos, também na área da saúde, é a crescente monopolização das atividades ligadas a estes setores (ainda mais quando submetidas aos procedimentos administrativos de intervenção e similares), gerando uma insegurança social além da prejudicial concentração econômica. O que se conclui é que, mesmo tendo um tratamento regido por lei especial (que garante processos administrativos de solução), de fato, essa especialidade não criou um sistema propicio para recuperação fática das atividades reguladas. Veja-se, no entanto, deixando de lado se são eficientes ou não, que os procedimentos especiais criados pelas leis esparsas, são de competência administrativa. E mais uma vez, não há como negar o direito de acesso ao judiciário para que aquela atividade regulada possa, diante de um processo judicial devidamente instaurado, tentar a sua recuperação. Se não temos uma legislação que diga como esse processo judicial recuperatório se dará, mais uma vez, outra opção não resta, para garantir efetividade daquilo que está no texto constitucional, que invocar o art. 4º da LINDB, utilizando-se do único procedimento judicial recuperatório que temos, que é aquele da lei 11.101/05.

Vê-se, portanto, que há uma relativização sim, em relação a vedação do art. 2º, II da lei 11.101/05, enquanto não previsto um processo judicial de recuperação para tais agentes. Não se pode argumentar aqui, que isso feriria o poder conferido às agências reguladoras: a uma porque elas podem e devem participar do processo recuperatório até mesmo para continuarem a exercer a fiscalização da atividade, e a duas, porque se as suas decisões administrativas podem (e devem, uma vez provocado) ser revistas pelo poder judiciário, nada obsta o desenvolvimento de um processo judicial de recuperação com a participação da dita agência reguladora. Também não há que se sustentar a aplicação imediata do disposto no art. 198 que estabelece que os proibidos anteriormente de requerer concordata também estão proibidos de se requerer recuperação judicial. Tal artigo poderia ter aplicação plena, se, frisa-se, o Legislativo tivesse produzido procedimento de processo judicial para recuperação de tais agentes. Não o fazendo e ainda a Constituição invocando como preceito fundamental o estímulo a qualquer atividade econômica, não há, por ora, como se sustentar tal vedação literal.

Por fim, convidamos o leitor, a acessar o PL 5.916/19 da Câmara, desenvolvido com nossa colaboração para alteração do rol dos legitimados ao processo de recuperação que, frisa-se, como exposto na “Justificação” está em pleno compasso com direito comparado. Precisamos relembrar que o Direito deve servir aos anseios da sociedade e que isso não representa nada mais do que sempre foi a ciência jurídica.

Artigo originalmente publicado no portal jurídico Migalhas.

Novidades