postado por VCMF Advogados
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06 de jun

Scilio Faver

Bacharel em Ciências Jurídicas pela Faculdade Nacional de Direito – UFRJ e Especialista em Direito Empresarial. No exercício da advocacia, teve destacada atuação em processos falimentares de grande repercussão, como os casos Varig, Soletur, Eletronet, Eucatex e Bloch.

31/01/2010

Revista Jurídica CONSULEX – Quais foram as grandes modificações, em termos práticos e técnicos, advindas com a Lei de Falência e Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/05)?

Advogado SCILIO FAVER – Com certeza, a principal modificação é a presença da figura da recupe¬ração do devedor, considerando-se este o empresário individual e a sociedade empresária. Nunca se presenciou tamanha preocupação por parte do legislador em viabilizar a superação do estado de crise do devedor. Atualmente, a falência é a exceção, sendo a regra a recuperação. Não é interessante para a economia e a coletividade que as sociedades empresárias, o pequeno e médio empresário quebrem. Hoje, as pessoas físicas estão percebendo, ainda que em processo lento, que as pessoas jurídicas não são mais vilãs, que apenas enriquecem à custa de pobres consumidores, mas, sim, responsáveis pela manutenção das fontes produtoras e dos empregos. Com relação aos aspectos técnicos, percebe-se que a nova Lei tornou mais célere o processo, tanto o de recuperação, inovador em relação ao antigo Decreto de 1945, como o da própria falência. Previram-se, ainda, meios que devem ser mais difundidos pela comunidade jurídica, como a utilização da recuperação extrajudicial e o sistema de recuperação judicial no que toca às micro e pequenas empresas.

Importante também foi o delineamento traçado pela Lei quanto aos denominados Órgãos de Administração, tais como a Assembleia Geral de Credores, que na antiga legislação era disciplinada de modo muito vago, sem regramentos e atribuições mais específicas; a nova figura do Administrador Judicial, antigo síndico, que agora passa a ter uma maior atuação, até mesmo de dirigismo, no processo de recuperação e falência; e a criação do Comitê de Credores como órgão aliado à fiscalização e à efetiva prestação jurisdicional, o que, além de trazer uma nova visão à atuação do magistrado e do membro do Ministério Público, contribui para a aproximação do Poder Judiciário com a realidade do empresário.

CONSULEX – De que maneira tem surtido efeito a recuperação perante os empresários e sociedades empresárias em crise financeira?

SCILIO FAVER – Surpreendentemente, de uma forma muito boa, já que a legislação anterior era vista pelos empresários como uma declaração de “morte”. Não existia preocupação prática em se preservar a atividade econômica explorada pelo empresário. A maneira como a antiga concordata era utilizada fornecia, muitas vezes, margem a fraudes e também não assegurava ao devedor em crise os recursos viáveis para a continuidade do seu negócio. Isso ocorria a tal ponto que as próprias instituições financeiras se recusavam a financiar as atividades dos concordatários. Hoje, temos uma legislação que abraça o empresário e os credores. A existência de uma Assembleia Geral de Credores, como órgão deliberativo mais próximo da atividade do devedor, possibilita não só uma maior transparência durante as tomadas de decisão, como auxilia o empresário a buscar alternativas para manter sua fonte produtora.

CONSULEX – Daí, o impacto gerado com a nova Lei na quantidade de pedidos de recuperação no Brasil…

SCILIO FAVER – Recentemente, um balanço feito pelo “Serasa Experian” declarou a queda no número de falências, especialmente em 2009. Dado curioso se pensarmos que, no ano passado, fomos assolados por uma crise econômica mundial.

Outro dado importante registrado pela pesquisa é que, no Brasil, ao invés das sociedades empresárias confessarem falência, o número de pedidos de recuperação mais que dobrou, ultrapassando a 670 casos. Isto deixa claro que a Lei gera uma expectativa otimista tanto para empresários, quanto para credores. O que se espera, portanto, é que o Judiciário venha a se preparar, especializando-se no assunto, para ter capacidade efetiva de conduzir o processo.

CONSULEX – O Senhor acredita que, apesar de recente, a Lei nº 11.101/05 já necessita de reformas?

SCILIO FAVER – Não diria propriamente uma reforma, até mesmo porque ainda é cedo para se preocupar em “emendar” e fazer “alterações legislativas” no texto. Porém, algumas interpretações já se fazem necessárias para garantir a preservação de fontes de emprego e o estímulo ao desenvolvimento econômico. Acredito que uma delas seria uma interpretação mais branda sobre a exigência de apresentação da Certidão Negativa de Débitos Fiscais (CND) pelo devedor que busca a recuperação.

Atualmente, para obter a concessão da recupe¬ração, a sociedade empresária deve estar em dia com suas obrigações fiscais, o que é um contrassenso. Ora, se a sociedade pede a recuperação, é porque logicamente está em débito. Mais lógico ainda é que o empresário não pode parar de pagar os empregados, os fornecedores e os bancos dos quais necessita de apoio laborativo e financeiro para continuar em operação. Logo, deveria ter acesso a um parcelamento maior do que o disponibilizado hoje, sendo preciso também esclarecer as formas procedimentais de apresentação da CND.

A meu ver, o que tem ocorrido na prática é uma interpretação que se mostra efetiva para a superação do estado de crise do devedor, ou seja, a dispensa na apresentação da CND. A adoção de tal medida é imprescindível até que se defina uma forma específica de parcelamento dos débitos fiscais daqueles em recuperação e que necessitam manter operantes suas atividades.

Outro ponto importante diz respeito aos credores trabalhistas. A limitação da Lei, na classificação de créditos a receber em estado de insolvência empresarial, pelos trabalhadores, em 150 salários-mínimos por credor, gera a falsa impressão de que os créditos derivados da legislação do trabalho são realmente prioritários em relação aos demais. O que na realidade não acontece, uma vez que ultrapassado o limite legal (art. 83, I), o restante do valor devido será alocado para os créditos quirografários, ou seja, iguala-se o credor trabalhista (no exorbitante daquele crédito de 150 salários-mínimos) ao credor sem garantia. Neste ponto, sim, há que se pensar em mudanças na reclassificação da ordem de pagamento, quando o crédito trabalhista exorbitar o limite imposto pela Lei, que não seja classificá-lo como quirografário.

CONSULEX – Como o Senhor analisa a atuação do Poder Judiciário nos processos de reestruturação de sociedades empresárias em crise?

SCILIO FAVER – Acredito que este seja o maior desafio da Lei de Recuperação. Preparar o Poder Judiciário para que esteja apto a encarar o fenômeno da empresa como ato civilizador. Em termos práticos, significa reprimir, de modo condizente, o abuso das decisões de desconsideração da personalidade jurídica, tão presente nos processos judiciais e sem, às vezes, qualquer fundamento. Deve-se evitar, também, decisões de responsabilização ilimitada dos sócios nas cobranças de dívidas, sem deixar que isso abra uma porta maior para fraudes e desvios (a este ponto devem atentar os membros do MP!).

A nova Lei indica que sua eficácia depende de especialização, como a criação de Câmaras de Recuperação e Falência em todos os Estados. Por outro lado, deve o Judiciário buscar uma aproximação com economistas, contadores e todos aqueles que atuam no dia a dia de uma sociedade empresária. Acredito já ter sido o tempo em que o afastamento do Poder Judiciário da população era eficaz como meio de reverência ou temor às leis e decisões judiciais. Hoje, aquele advogado, juiz ou membro do Ministério Público que não se preocupar com outras áreas fora daquelas estritamente ligadas ao texto legal terá enormes dificuldades em desempenhar suas atribuições a contento.

O contato próximo entre o empresário em crise, devidamente representado por seu corpo jurídico, o magistrado e o promotor, por exemplo, mostra-se imprescindível para se evitar um número astronômico de quebras, com forte abalo na economia brasileira. Claro que, para isto ocorrer, é preciso abertura e que os envolvidos mostrem-se fiéis à conduta ética e moral.

CONSULEX – É comum várias sociedades empresárias, valendo-se da Lei nº 11.101/05, ingressarem com um único pedido de recuperação judicial sob o fundamento de pertencerem ao mesmo grupo econômico. Qual a sua opinião a respeito?

SCILIO FAVER – Esse fato tem sido corriqueiro, mas há que se ficar atento ao fenômeno litisconsorcial. Os posicionamentos favoráveis sustentam, principalmente, que tal proceder atenderia aos princípios da celeridade e economia processuais e até mesmo ao da preservação da empresa. Acredito, porém, que o mais importante é garantir aos credores o recebimento de pelo menos parte dos seus créditos e ao mesmo tempo a segurança do devedor, que hoje não mais busca a sua quebra, e sim meios de assegurar a continuidade de suas atividades empresárias. E não é só o devedor que deve clamar por isto, mas toda a coletividade.

Quando se coloca um litisconsórcio em re¬cuperação judicial, por exemplo, deve-se ter cuidado na elaboração e posterior aprovação do plano de recuperação. Apesar de pertencerem ou, em alguns casos, parecerem do mesmo grupo econômico, tais empresas são dotadas de personalidade jurídica diversa, corpo de administração diferenciado e grupos de credores distintos. Ademais, a Lei nº 11.101/05 refere-se sempre à sociedade empresária, ao devedor e ao próprio plano de recuperação, no singular. Sendo assim, fica realmente difícil, do ponto de vista técnico, considerar a hipótese de várias sociedades, com personalidade jurídica distinta, elaborarem um plano de recuperação comum que seja viável e não fira a teoria da empresa, consagrada no Código Civil em vigor.

CONSULEX – Em relação aos credores, a Lei nº 11.101/05 permite-lhes influenciar o processo de recuperação?

SCILIO FAVER – Sem dúvida. A Lei atual trouxe de modo incisivo a Assembleia Geral de Credores como órgão deliberativo, que decide e ganha destaque na coordenação do próprio processo. A criação do Comitê de Credores também representa uma novidade que deve ser explorada, permitindo aos credores uma maior fiscalização durante todo o procedimento, seja de recuperação ou de quebra.

Tal aproximação veio em boa hora, pois muitas pessoas já estavam desacreditadas dos processos falimentares. Aliás, os credores tinham absoluta certeza de que perderiam dinheiro e, também, que não recuperariam seus créditos. Atualmente, uma visão otimista já é possível, mas desde que todos os envolvidos no processo estejam imbuí¬dos do propósito legal de preservação e manutenção do princípio par conditio creditorum. Princípio este que, embora tão esmiuçado, é comumente esquecido na prática.

CONSULEX – Muito se tem discutido acerca da autorização de venda de unidades produtivas isoladas sem qualquer espécie de sucessão, em especial trabalhista. Em sua opinião, qual o posicionamento correto?

SCILIO FAVER – O posicionamento decorrente do disposto na Lei (art. 141, II) é pela não sucessão de qualquer espécie. Já a discussão sobre a constitucionalidade ou não do artigo se fará entre os doutrinadores dos diferentes ramos do Direito. A minha opinião é pela prevalência do que diz a atual legislação falimentar. Primeiro, por um aspecto óbvio, no sentido de que o devedor em recuperação terá de enfrentar um sério desafio para desvencilhar-se de suas unidades produtivas isoladas com a venda. No caso de um passivo, ainda mais trabalhista, ficará realmente difícil captar ativos para pagamento dos credores e a continuidade do negócio.

Hoje, porém, já é possível vislumbrar a recupe¬ração do devedor com a manutenção dos empregos. O cenário é mais otimista do que na época das concordatas, no entanto, as pessoas ainda estão presas à memória de que um pedido de concordata é sinônimo de “calote” e demissão em massa. Mas é claro que isto pode ser remediado se todos os órgãos envolvidos, conjugados com os da própria administração da sociedade empresária, esforçarem-se para decidir, fiscalizar e, sobretudo, obter o direito à informação e transparência em todo o processo.

Em momento de crise todos viram “sócios” por buscarem o mesmo fim. Assim, se agirem para a quebra, certamente irão à falência, mas se atuarem em conjunto, é certo que sobreviverão à crise. O que não se pode admitir é que a venda de unidades produtivas isoladas se revista, na verdade, da venda da empresa como um todo, ou seja, envolva todo o complexo de bens devidamente organizados para a realização do objeto social da sociedade empresária.

CONSULEX – É possível retirar algo do que a Lei atual regulamenta, em sede de recuperação, para que os empresários possam aplicar neste momento pós-crise?

SCILIO FAVER – Claro. A Lei oferece alguns sistemas organizatórios que devem ser mantidos, em especial durante o cumprimento do plano de recuperação judicial aprovado. É interessante ressaltar que, como já dito, em 2009 – ano da explosão da crise financeira mundial – tivemos muitos requerimentos de recuperação judicial perante os tribunais. Isto demonstra otimismo, mas não eficácia. Diria que neste período pós-crise é que vamos colocar em teste aquilo que a legislação falimentar pretende. Dependerá também da nossa capacidade de interpretar a Lei não desperdiçar um único momento para auxiliar o desenvolvimento econômico e social do País, mediante a preservação das fontes produtivas, representadas pelo empresário individual e sociedades empresárias.

A propósito, retiro do livro Os Órgãos de Administração na Recuperação Judicial, de minha autoria, lançado recentemente, uma frase de Carlos Drummond de Andrade que prega o otimismo frente a uma nova lei, para que o passado não sirva de entrave a mudanças justas e necessárias. É mais ou menos assim: “Abre os vidros de loção e afasta o insuportável mau cheiro da memória”…

Para finalizar, vale destacar que nenhuma legislação de preservação de empresas em crise bastará se os profissionais da área, dentre os quais me incluo, não se preocuparem em interpretar o texto legal no sentido e no anseio para o qual foi criado. É desta forma que deve ser aplicada a Lei nº 11.101/05.

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